O retorno misterioso de Geraldo Vandré ao Brasil, há 50 anos




De Edson Vieira

No início de 1969, um mês após decretado o famigerado Ato Institucional nº 5, com receio de ser preso pelo regime militar, o músico Geraldo Vandré partiu para o exílio – residiu no Chile, embora tenha passado alguns meses viajando pela Europa. Ele voltaria ao país quatro anos e meio depois, em 17 de julho de 1973, em uma história até hoje controversa.

De acordo com seu biógrafo Jorge Fernando dos Santos, autor do livro Vandré - O homem que disse não, esse retorno teria sido combinado por sua família com os militares. E deveria ocorrer de forma sigilosa. 

O plano não deu completamente certo graças a um furo do Jornal do Brasil, que publicou em 18 de julho uma nota de 17 linhas intitulada "Vandré volta e é preso". O texto dizia que ele havia sido detido logo após o desembarque no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. "O artista foi levado para uma unidade militar, onde se encontra incomunicável." A nota ainda informava que, "segundo fontes da Polícia Federal", ele estava "sendo procurado devido à composição Caminhando e também porque teria feito no exterior declarações consideradas ofensivas ao Brasil". 

Caminhando é como ficou conhecida a célebre canção Pra não dizer que não falei das flores, composição de Vandré que ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção de 1968 e se tornou uma espécie de hino da resistência ao regime ditatorial vigente no país. 

"Tornou-se um clássico da música brasileira. Foi a primeira música que falava explicitamente contra a ditadura, e isso no ano de 68", pontua o jornalista e pesquisador musical Renato Vieira. "Não tem metáfora: fala sobre flores vencendo o canhão, soldados armados… É um recado muito claro. Uma música muito simples, mas que tem uma força imensa."

A volta clandestina

Conforme conta o biógrafo Vitor Nuzzi, autor do livro Geraldo Vandré: Uma canção interrompida, no mesmo dia em que saiu a nota no Jornal do Brasil toda a imprensa brasileira recebeu uma determinação do governo proibindo terminantemente "a publicação, divulgação, referências ou transmissão de notícias e comentários sobre o subversivo e cantor Geraldo Vandré". 

A revista Veja desrespeitou a ordem e publicou uma notinha na edição de 25 de julho, informando que o músico havia retornado, sido detido e liberado após prestar "esclarecimentos a autoridades" e se encontrava, segundo seu pai, "repousando em casa de amigos". No dia 28, também em uma pequena nota, o Jornal da Tarde foi outro veículo que ignorou a censura imposta.

Mas o que mais serviu para alimentar teorias sobre o que teria acontecido com Vandré e qual acordo sua família teria feito com os militares para resguardar seu retorno, foi a maneira como sua volta "oficial" foi forjada.

"Geraldo Vandré desembarcou no Aeroporto do Galeão na manhã de 17 de julho de 1973. Foi imediatamente levado para interrogatório. Um mês depois, foi posto em um avião como se estivesse chegando ao Brasil naquele momento. Ainda no aeroporto, deu uma suposta entrevista, que foi levada ao ar pelo Jornal Nacional, da TV Globo", afirma Nuzzi. 

"Os 'entrevistadores' eram policiais, e as perguntas foram dirigidas. Conheci o cinegrafista que fez as imagens daquela entrevista, que foi uma condição para que ele pudesse ficar no Brasil", relata o biógrafo. "Vandré afirmou ali que a utilização de sua obra por grupos políticos sempre ocorreu contra sua vontade e que ele nunca pertenceu a qualquer grupo político. O que é verdade, por sinal. Mas, voltando ao início, o fato é que a ditadura forjou um retorno para que Vandré fizesse uma espécie de 'retratação'."

A volta oficial

Essa operação, digna de um roteiro de filme, está detalhada em um dos capítulos do livro de Nuzzi. Foi uma encenação, realizada na madrugada de 18 de agosto de 1973 no aeroporto de Brasília. 

Conforme o veterano cinegrafista Evilásio Carneiro relatou a Nuzzi, por volta das 5h da manhã ele viu várias pessoas de paletó chegando ao terminal e uma estranha movimentação de motos nas redondezas. Contratado por uma produtora, Carneiro estava lá porque deveria registrar a chegada de um executivo. 

Foi abordado por um dos homens que determinou: ele deveria abortar sua missão e executar uma outra pauta. Obedeceu, e eles foram para uma sala em que era possível ver um grupo de pessoas com faixas de boas-vindas a Vandré. Achou estranho. Elas agiam uniformemente, como se tudo tivesse sido combinado e ensaiado.

Então apareceu o músico, escoltado por homens que o cinegrafista identificou como militares. Magro, abatido e cabisbaixo, segundo ele se recorda. Carneiro foi encarregado de gravar uma entrevista em que não havia perguntas, mas sim um dos homens orientando o músico a falar o que deveria ser dito. Segundo Nuzzi apurou, o "repórter" seria um agente que fazia a ponte entre a emissora de TV e o governo militar. 

O plano dos militares, concretizado, era enviar a fita para a TV Globo, determinando que fosse exibida a suposta entrevista. "Foi quando o Jornal Nacional exibiu, naquele 18 de agosto, o seu depoimento, uma espécie de retratação pública, prometendo que só faria música de amor e tentaria se adaptar à nova realidade nacional", diz o biógrafo Santos. "Isto é: a realidade do chamado 'milagre brasileiro', criado pela ditadura."

O material não consta dos arquivos da Globo. Mas a transmissão rendeu notícia no Jornal da Tarde, na edição de 22 de agosto. E o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), unidade policial que era responsável pela repressão política, registrou no prontuário de Vandré a veiculação da "entrevista".

No mesmo dia 18, um telegrama do governo enviado às redações tornou "liberado qualquer texto relativo ao compositor Geraldo Vandré". 

Mistério que segue

O mistério sobre o que ocorreu nesse período de 31 dias entre a "volta clandestina" e a "volta oficial" persiste. Recluso e pouco disposto a dar entrevistas, o próprio Vandré, prestes a completar 88 anos, nunca esclareceu o caso. Ele foi procurado pela DW Brasil, mas não atendeu ao telefone nem retornou aos recados deixados. 

Quando foi perguntado pela imprensa, sempre desconversou. Mas enfatiza que nunca foi preso nem torturado. E é essa a versão que seus amigos costumam dar também.

Em setembro de 1985, a revista Veja publicou uma reportagem em que mostrava a suposta cela onde ele teria sido preso nesse período: um cubículo, originariamente carceragem da Polícia Federal, no prédio da então Fundação Centro de Formação do Servidor Público, em Brasília, atualmente Escola Nacional de Administração Pública.

"Ele ficou muito magoado porque se sentiu usado pelo movimento [de resistência] da época", acredita o historiador e sociólogo Wesley Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ele evita falar [sobre o assunto], é errático nas respostas. Acredito que fez um acordo com o governo, sofreu uma pressão psicológica e aí ele e sua família ficaram em paz."

Citando depoimentos de pessoas próximas ao músico, Santana entende que Vandré foi vítima não de tortura física, como alguns defendem, mas de "tortura psicológica, aquela que chama a pessoa, pergunta um monte de coisa, depois chama de novo, depois o carro da polícia passa em frente à casa dele".

O biógrafo Nuzzi concorda. "É importante repetir: Geraldo Vandré nunca foi preso, muito menos torturado fisicamente. Sofreu a violência de ter que deixar o país e de ser proibido de voltar durante muito tempo", frisa. "Perdeu o emprego e foi censurado, o que é a violência maior para um artista, um criador. Durante algum tempo, foi quase apagado da memória coletiva nacional."

Para o pesquisador Vieira, trata-se de um momento "muito nebuloso". "A gente não sabe exatamente o que é verdade e o que não é", comenta.

Santos diz que o músico "chegou a ser detido, mas não chegou a ficar preso". "O próprio Vandré afirma que não foi preso. Ficou em tratamento. Consta que estava muito deprimido, sofrendo de banzo […]. Ele nunca foi torturado, ao contrário do que alguns fãs insistem em acreditar. Ele próprio nega isso e diz que foi tratado pelo Exército", afirma o biógrafo. Detalhes desse "tratamento", contudo, nunca vieram a público.

Carreira interrompida

Fato é que, como bem lembra Vieira, ao contrário de outros grandes artistas brasileiros que foram exilados, Vandré não retomou a carreira. "Sua obra foi interrompida", diz o pesquisador. 

Anistiado pelo governo, conseguiu retomar seu emprego como funcionário público na antiga Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab). Foi auditor fiscal e seguiu no funcionalismo público quando a Sunab foi extinta, em 1990, e seus encargos incorporados ao Ministério da Fazenda. Passou a morar em São Paulo, em um apartamento no centro da cidade, e tornou página virada o nome artístico Vandré – seu nome de batismo é Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.

Musicalmente, fez pouco depois do exílio. Ao menos daquilo que é público, já que alguns amigos comentam que ele teria muito material inédito. "É importante notar que o criador nunca deixou de existir. Ele continuou compondo", diz Nuzzi.

Nos anos 1990, compôs a canção Fabiana, uma ode à Força Aérea Brasileira (FAB). Nas últimas décadas, os shows foram raríssimos. "Fez algumas apresentações no Paraguai, na fronteira com o Brasil [em 1982], apresentou obras para piano em São Paulo [em 1987, com a pianista Beatriz Malnic] e fez três shows em 2018: dois em sua cidade natal, João Pessoa, e uma em Sorocaba, interior paulista", enumera Nuzzi. Em 2014, quando a cantora americana Joan Baez se apresentou em São Paulo, ele chegou a subir ao palco com ela. 

Aposentado e viúvo há mais de dois anos, decidiu fechar o apartamento em São Paulo e hoje mora no Rio, com uma irmã. Em maio deste ano, apareceu publicamente na capital paulista, conferindo uma sessão especial do filme A hora e a vez de Augusto Matraga, de 1965 e para o qual ele fez a trilha sonora. 

Ainda em São Paulo, ele atendeu à reportagem do jornal Folha de S. Paulo em uma conversa de 21 minutos em que foi monossilábico e evasivo nas respostas. Mas reafirmou que não foi torturado e disse que "nem preso eu fui". Perguntado pela reportagem, preferiu não dar opinião sobre Lula ou Bolsonaro.

De protesto

Ainda à Folha, também negou ter sido compositor de músicas de protesto. "Isso é uma alienação. Cantor de protesto é americano, eu fazia música brasileira", disse. 

Mas o biógrafo Santos afirma: "Vandré entendeu o espírito de sua época e fez da música de protesto a sua marca, embora sempre diga que suas canções são de amor e não de protesto."

Fundador do grupo Zimbo Trio e diretor do Centro Livre de Aprendizagem Musical (Clam), o músico Amilton Godoy avalia que Vandré tem seu lugar na história da MPB porque "foi um dos compositores que usavam a música para protestar". "Foi um grande protestador contra aquele regime", diz. "Escrevia muito bem e usou sua capacidade de letrista para protestar contra aquela situação."

"Ele se tornou símbolo de uma época em que a música brasileira estava muito atrelada à questão política, depois do golpe de 64", completa Vieira. "Assim, naquilo que convencionou chamar de música de protesto, ele se tornou um dos mais aguerridos contra a ditadura, expondo as desigualdades e os conflitos sociais."

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Edison VeigaEdison Veiga
Edison Veiga Repórter

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